Em boa hora a Saguão deu a lume os Poemas envelope de Emily Dickinson (Julho de 2020).
Quando, em 2012, a New Directions publicou o grosso e pesado volume intitulado Emily Dickinson, The Gorgeous Nothings, o mundo académico e artístico rejubilou. As reacções de poetas, artistas e especialistas de poesia, em geral, e da obra de Emily Dickinson, em particular, não se fizeram esperar. Marjorie Perloff imediatamente lhe chamou o seu “livro do ano”. Como disse a poeta e privilegiada leitora de Dickinson, Susan Howe, que aliás escreveu um belo prefácio para o livro, The Gorgeous Nothings é, em si mesmo, uma verdadeira obra de arte.
Concebido e realizado pela especialista da obra de Dickinson, Martha Werner, e pela artista visual e plástica, Jen Bervin, o livro muito nos diz da poesia enquanto arte multifacetada. Martha Werner reuniu os manuscritos da última fase de criação de Emily Dickinson, todos eles escritos a lápis, quando a poeta deixara já de organizar cuidadosamente os seus famosos fascículos e se limitava a rabiscar, embora não à toa, o que a imaginação lhe ditava, aproveitando envelopes usados; Jen Bervin, por sua vez, dispôs nas páginas do livro, como quadros em exposição, facsimiles desses manuscritos de formas e cores bizarras e difícil decifração. Quem quiser ler tem a ajuda do dactiloscrito na página oposta, mas nem assim a leitura, a exigir formas arrevesadas de olhar, é mais fácil. Ler poesia nunca é fácil, e o impacto deste poemar a três dimensões é uma experiência inesquecível. A expressão “gorgeous nothings” [esplêndidos nadas] é retirada de um fragmento rabiscado num desses envelopes aproveitados, em que esta poeta, para quem o pequeno é grande, fala de ninharias que deslumbram, como o pôr-do-sol:
Em 2016 a New Directions publicou uma versão reduzida de The Gorgeous Nothings, a que chamou Envelope Poems. Enquanto The Gorgeous Nothings se aproxima daquilo a que em inglês se chama coffee-table book, um livro pesado e caro, de encadernação elegante, para exibir na sala de visitas, e muito difícil, se não impossível, de ler na cama, Envelope Poems é um livrinho de menos de uma centena de páginas, de preço acessível e de fácil leitura íntima – e que apetece oferecer. Em inglês costuma mesmo falar-se, neste caso, de gift-book. Foi esta versão reduzida que a Saguão publicou agora entre nós, numa cuidada edição bilingue. As traduções são de Mariana Pinto dos Santos e Rui Pires Cabral, com revisão literária de Jeffrey Childs.
A apresentação dos facsimiles de envelopes ou partes de envelopes, rabiscados por Emily Dickinson em aparente desleixo, muito nos diz dos processos de escrita desta poeta. Nos espaços diminutos em que se autorizou a escrever, assumindo-lhes a forma que de certo modo ela própria lhes deu, ainda há lugar a variantes, de que a tradução não deixa de dar conta. Tal como o inglês, o português reproduz a forma que as próprias palavras reiteram. Um dos meus envelopes preferidos é o que serve de capa a Poemas envelope, com um brevíssimo poema, formado pela pequena aba triangular de um envelope, a reflectir sobre a brevidade da vida e sobre o que ela nos concede, ou não:
Diz-se que usar envelopes usados é sinal da parcimónia típica da Nova Inglaterra. Talvez sim. A mim, porém, parece antes suscitar reflexão sobre os processos de criação de Dickinson. Por um lado, o imediatismo da sua escrita, tão bem captado num poema de George Monteiro tornado público na revista interactiva Portuguese American Journal (http://portuguese-american-journal.com/poem-setting-out-by-george-monteiro/). Aqui fica o poema em tradução minha:
De manhã, antes de começar o dia,
enfiava no bolso do avental
um toco de lápis e um pedaço
de papel, dobrado ao meio –
para não ter de procurar muito
quando lhe apetecesse rabiscar
uma ideia ou guardar uma palavra
rara, enquanto fazia de doméstica.
Por outro lado, uma escrita poética que concebe as palavras como material de construção (a lembrar o Pessoa/Caeiro de “E há poetas que são artistas”). Dickinson não se limitou a servir-se de envelopes usados; deu-lhes formas e delas se aproveitou, reinventando-as no movimento da própria escrita. No facsimile reproduzido na p. 50, por exemplo, na meia aba de um pequeno envelope, que tanto parece uma asa de pássaro como uma bainha de arma branca, Dickinson deixa traçada a sua teoria poética: a palavra cognata, como lhe chamou Hart Crane (uma espada, uma bainha) e o pouco (nota de pássaro) que é o muito (língua-toda-poesia):
Poemas envelope está cheio de exemplos da materialidade de escrita em Dickinson. Mas um outro me ocorre, bem curioso: o coto de lápis que ela mandou um dia ao seu amigo, Samuel Bowles, de quem há muito não recebia carta. O lapitos ia embrulhado num pedaço de papel com um poema atrevido, que aqui traduzo:
Se sem lápis
Não usaria o meu –
Gasto – rombo – doce,
De muito te escrever.
Se sem palavras,
Não traçarias a Margarida,
Do tamanho que eu tinha
Quando me colheste?
P. S. No passado dia 8 de Outubro, a Academia Sueca anunciou a atribuição do Prémio Nobel da Literatura a Louise Glück. Muita gente ficou surpreendida, incluindo a própria, pelo facto de o prémio ter decidido homenagear este ano a poesia lírica e uma mulher-poeta branca, cidadã, ainda por cima, dos hoje tão mal-afamados Estados Unidos da América. “Já ganhámos os prémios todos”, parecia Glück reclamar das inclusões e exclusões do Nobel ao saber da notícia. Os prémios, incluindo os literários, valem o que valem, incluindo o Nobel. Glück, que conquistou, entre muitos outros, praticamente todos os prémios literários que a nação americana tem para oferecer (Bolinger, Pulitzer, National Book Award), sabe disso muito bem. O prémio vem mesmo a calhar, confessa ela, para adquirir uma moradia própria no Vermont, onde muitos anos antes o fogo lhe destruíra completamente a casa. Como não lembrar o tom pessoal e mesmo intimista com que a sua poesia fala das moradas da alma, da sua e da dos outros? A poesia de Louise Glück tem um claro pendor autobiográfico, muito subtilmente urdido por temas e figuras bíblicas e mitológicas. É tentador ouvir, no belíssimo livro que é Averno (2006), a voz do eu lírico em Perséfone, aquela que não sabe o que é o inverno, só sabe que é ela quem o provoca.
Quando soube do Nobel atribuído à sua colega, que tão bem a tem lido, a jamais premiada Emily Dickinson sacou do lápis e de uma ponta de uma aba de um envelope usado e escreveu:
Maria Irene Ramalho, Jornal de Letras, 21 Outubro, 2020
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