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“Pensamentos” de Giacomo Leopardi na Revista E do Semanário Expresso

Escrito em 25 de Agosto de 2018

Os cento e onze fragmentos que Giacomo Leopardi redigiu ou reformulou entre 1831 e 1835, e que foram publicados após a sua morte, antes dos 40 anos, em 1837, são uma destilação do famoso “Zibaldone”, as quase cinco mil páginas de anotações que este aristocrata erudito e infeliz nos deixou.

Tal como os livros dos “moralistas” franceses (um dos quais, La Bruyère, é citado), esta colectânea (aqui em edição bilingue, e com um substantivo posfácio) propõe-se comentar a conduta humana, os hábitos sociais, as lições da experiência. Mas não se pense que Leopardi apenas verifica comportamentos: percebemos que supõe conhecer igualmente os pensamentos dos seus contemporâneos, e que tirou conclusões definitivas sobre a espécie humana, conclusões que as observações apenas confirmam. As duas principais ideias dos “Pensieri” são talvez estas: os homens são sobretudo motivados pelas paixões vis, como a cupidez e a inveja; e o mundo é inimigo do bem.

Pessimista inabalável, Leopardi não se limita a registar os egoísmos, ingratidões, imposturas, insídias e maledicências dos homens e mulheres que conhece; não se trata de criticar uma sociedade específica mas de desfazer as ilusões quanto aos homens de todos os tempos e lugares. Mais do que serem maus, os homens não valorizam o bem. O bem é uma virtude abstracta, mas na vida de todos os dias as virtudes contam menos do que a utilidade, a fama, o sucesso. Por isso ninguém admira a virtude, a não ser detestando-a. Por isso ninguém odeia quem faz o mal, mas apenas quem identifica o mal. Aliás, o que são essas categorias, o bem e o mal? Um dos primeiros pensamentos é este: “A morte não é um mal: porque liberta o homem de todos os males, e juntamente com os bens lhes tira os desejos. A velhice é o mal supremo, porque priva o homem de todos os prazeres, deixando-lhe porém os apetites (...). Apesar disso, os homens temem a morte e desejam a velhice.”

Tão frio quanto Maquiavel, Leopardi acredita que mais vale ser temido do que amado, até porque o amor talvez seja apenas imaginação, uma das muitas crenças que seguimos porque nos tranquilizam. O aforista invoca em abono das suas teses os sábios gregos, a antropologia do cristianismo, os ficcionistas modernos, embora defenda que a misantropia não é uma tese, mas uma experiência. E é verdade que quando estes pensamentos dizem respeito aos homens em sociedade, ao desacordo entre o dito e o feito, por exemplo, são persuasivos; no entanto, os fragmentos mais veementes são quase sempre hipóteses indemonstráveis, menos observações do que teorias sobre a natureza humana. Assim, quando se diz que ninguém deve confessar desvantagens ou desventuras, porque a franqueza é uma forma de fraqueza e a infelicidade de alguém é motivo de alegria para os demais, é verosímil que isso descreva bem certos contextos sociais, mas não é evidente que defina uma atitude invariável da espécie.

Livro tardio, livro de velho, quase se diria, “Pensamentos” está, curiosamente, do lado da juventude. Não do lado dos jovens, mas do dom da juventude. Para o poeta romântico que Leopardi também foi, só a juventude pode viver o melhor que a vida tem, a “veemência do desejo”. A juventude é a nossa única possibilidade. Mas os jovens, que têm razões para viver, não têm ainda a arte de viver. E essa possibilidade passa de vez com a idade. Daí que as sociedades, vingativas, funcionem como uma conspiração de velhos para abolir a juventude, para impedir os jovens de viverem a sua juventude, diminuindo o valor de um bem indiscutível (a alegria) em favor de bens discutíveis (a virtude).Há outras passagens notáveis nos “Pensamentos”, algumas das quais muito modernas, como a obsessão em ser “autor” ou o poder destrutivo e defensivo do riso. O tédio é um tema recorrente: muitas das vilezas que as pessoas fazem servem antes de mais para combater o tédio. Já a frivolidade é vista como um bem, porque não há convívio sem trivialidade. Mas uma e outra vez o texto volta à melancolia teatral dos jovens, aos velhos que acham que o clima mudou porque eles mudaram, aos jovens que à medida que o tempo passa se vão contentando com menos, aos velhos que coleccionam efemérides para impedir que o passado se apague. Leopardi evita casos na primeira pessoa, mas é fácil pressentirmos uma fortíssima ressonância autobiográfica. Porque ele nos aconselha, com evidente mágoa, a não confiarmos em ninguém; porque diz que só escolhe o bem quem não teve escolha; porque lamenta a insuficiência do mundo face à vastidão do espírito.

— Pedro Mexia, sobre PENSAMENTOS de Giacomo Leopardi, Revista E do Semanário Expresso 25.08.2018