«Leopardi incorporara de tal forma a torrente imemorial dos Antigos, que podia manejá-la, lírica e subjectivamente, como se reescrevesse o clássico por dentro. […] Os exemplos canónicos servem-lhe como auctoritates, mas também como armas de arremesso, técnicas de ataque e instrumentos de uma ironia implacável. É o caso de Marcial, “que, quando alguém lhe perguntava por que motivo não lhe lia os seus versos, respondia ‘para não ouvir os teus’” (p.43). […] Em tudo quanto escreveu, esteve sempre presente o mesmo cuidado formal, um empenho infatigável em fazer jus aos modelos e às realizações do passado, cunhando sobre elas o que provinha de uma personalidade literária idiossincrática e de enorme força.» O riso de Leopardi, não muito frequente, é o de Voltaire, mais imbuído de ironia do que de brandura — “Quem tem coragem de rir é dono do mundo, quase como quem está pronto para morrer.” (p.111) Rir é, para este autor, menos um reflexo, ou uma válvula de descompressão, do que um ricochete, uma reacção a um mundo que, fundamentalmente, se dá a ver como hostil, perigoso, imprevisível — “uma liga de malandros contra os homens de bem, de vis contra generosos” (p.11); “carnificina que o homem faz do próximo” (p.41)”; “os homens, na sua maioria, são malvados da mesma maneira” (p.61). É curioso, e indício instigante de uma personalidade literária contraditória, que o mesmo autor fosse capaz de afirmar tão candidamente: “a minha inclinação nunca foi a de odiar os homens, mas sim a de os amar” (p.11), quanto: “Os verdadeiros misantropos não se encontram na solidão, mas no mundo: porque é a experiência prática da vida, e não a filosofia, que faz odiar os homens.” (p.123). |
Quanto mais nega a sua misantropia, tanto mais a afirmam as suas deposições e o que elas traduzem em relação a uma certa visão do mundo e do comportamento humano — “Não se adquire o título de amável senão à custa de padecimentos” (p.45). Talvez estivesse na sua constituição ser, como Pessoa dizia a seu próprio respeito, “Alguém como Rousseau…/ Misantrópico amante da humanidade.” (Paginas íntimas e de Auto-Interpretação, Ática, 1966)
Em tudo quanto escreveu, esteve sempre presente o mesmo cuidado formal, um empenho infatigável em fazer jus aos modelos e às realizações do passado, cunhando sobre elas o que provinha de uma personalidade literária idiossincrática e de enorme força.
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