Publicado pela primeira vez em 1798, na célebre colectânea-manifesto “Lyrical Ballads”, “A Balada do Velho Marinheiro” distinguia-se no entanto da tonalidade dominante dos poemas desse volume, que é a da “linguagem da conversação”; trata-se antes, como em outros grandes poemas narrativos de Coleridge, “Kubla Khan” e “Christabel”, de uma espécie de assombração, balada enigmática de sons temerosos. Há uns anos, saiu em português uma tradução de Gualter Cunha; agora, recupera-se uma versão de 1960, de Alberto Pimenta, integrada na sua tese de licenciatura. Poucos poetas têm a erudição e a inventiva de Pimenta, de modo que a tradução, obra de juventude, é muito engenhosa, mesmo quando se afasta da musicalidade do original, procurando outra música igualmente cativante: “De mastros bem abatidos | e proa meia afundada/ Como alguém que perseguindo | por furiosa surriada/ Vai fugindo e ainda pisando | a sombra do inimigo/ E dobra e esconde a cabeça | para esquivar o perigo,/ Assim o navio voava | e direito ao Sul fugia,/ Enquanto o vento bramava | e rebramava e zunia” (tão importante é a musicalidade que esta edição anota uma “pausa de semínima” a meio dos versos, um requinte que se estende à reprodução das gravuras de Gustave Doré e a todo o grafismo). Esmagadora e misteriosa, a “Balada” é a história de um marinheiro contada pelo próprio a um convidado de uma festa de casamento. Um dia, o marinheiro seguia num navio que uma tempestade apanhou. Presos nos gelos e nevoeiros do Pólo Sul, os tripulantes são salvos por um albatroz, que os guia para fora daquelas paragens. Então, o marinheiro mata o albatroz, acto gratuito que nasce do tédio ou da vontade de transgressão e que podemos entender talvez como uma dramatização do pecado original. Os outros marinheiros hostilizam o narrador, depois reconciliam-se com ele, e aparecerão navios-fantasmas, mortos-vivos, provações várias e ocasiões de redenção. Tudo no marinheiro é aventura romântica: viagens e perigos, a natureza e os deuses, as coisas visíveis e invisíveis. Mas é um romantismo condenado ao eterno retorno. Escreve Pimenta: “Esta compulsão de quase permanentemente refazer, narrando, o próprio crime, ou falha, ou falta, ou desvio inicial, é provavelmente o arranque que leva a qualquer narração poética (...).” Porque um poema é “uma forma de reparação”, e isso mesmo há-de descobrir o convidado da boda: “Foi-se embora aturdido,/ Foi-se embora transtornado:/ Acordou ao outro dia/ Mais grave e mais avisado.” Pedro Mexia |
Recensão de Pedro Mexia à Balada do Velho Marinheiro de S. T. Coleridge,
com tradução de Alberto Pimenta, na Revista E do Semanário Expresso,
(Novembro, 2017)